Filme: ‘Kill the Referee’

Os árbitros querem mostrar que também são humanos e que por isso erram. dois portugueses comentam novo filme.
Um golo em fora de jogo, um penálti duvidoso ao cair do pano: em dois lances, acontecia a Howard Webb o que um árbitro menos deseja numa partida de futebol: ser a figura do jogo. Nos acessos aos balneários, o treinador holandês da selecção da Polónia, Leo Beenhakker, só grita: "Fucking disgrace! Fucking disgrace! English referee!" O primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, não esteve com meias-medidas e confessou o que lhe apetecia fazer ao árbitro inglês: "Matá-lo!" Jogava-se o Áustria-Polónia, do grupo B do Campeonato da Europa de Futebol de 2008 e, apesar do empate a um golo, houve uma equipa que saiu a perder naquela noite – a equipa de arbitragem.
‘Kill the Referee’ (‘Matem o Árbitro’) é o ponto de partida para uma viagem ao mundo pouco conhecido dos árbitros profissionais de futebol. Durante o filme podemos observar o ambiente de tensão na cabina dos árbitros, ouvir as comunicações entre a equipa de juízes durante a partida, as suas dúvidas sobre as jogadas e entrar em casa da família dos homens que, normalmente, vestem de preto. O documentário, que estreou em Agosto passado no Festival Internacional de Locarno, na Suíça, estreia em Portugal durante o doclisboa, que arranca na próxima quarta. O Euro 2008, realizado na Áustria e na Suíça, foi o cenário escolhido.
Quem não teve de esperar até 15 de Outubro foi Jorge Coroado, já reformado da arbitragem, e Lucílio Baptista, a preparar-se para pendurar o apito no final desta época. Os dois juízes foram convidados pela Domingo a assistir em primeira-mão ao documentário dos belgas Yves Hinant e Jean Libon. E do que viram o que gostaram menos foi mesmo do título: ‘Matem o Árbitro’. Fossem eles os responsáveis pela tradução do filme para inglês e o título seria outro: ‘A vida de um árbitro’. Na verdade, não falham muito o original: ‘Les Arbitres’, em português ‘Os Árbitros’. "Mas não ia chamar a atenção de ninguém", reconhece Lucílio Baptista.
Apesar da surpresa inicial lançada pelo título – "Ai o filme chama-se ‘Kill the Referee’?!", perguntou logo intrigado Lucílio –, os dois homens do apito concordam que o documentário é um retrato fiel daquilo que é o antes, o durante e o depois de uma partida de futebol. "Eles acabam por transmitir que o árbitro é um ser humano como os outros, com sentimentos, com família e que também se pode enganar", explica Coroado.
As horas que antecedem a partida são o momento mais stressante para os juízes. No balneário do árbitro suíço Massimo Busacca não se troca uma palavra, nem um sorriso. Acocorado, o árbitro reza. Um dos fiscais de linha benze o outro. À cabina chegam os ecos dos 50 mil adeptos suecos e gregos, que cantam e pulam ao som dos White Stripes no estádio Ernst-Happel, em Viena. A equipa de arbitragem é a primeira a sair. No rosto de cada um dos 4 elementos (árbitro, 2 fiscais de linha e 4º árbitro) a tensão é visível.
"Antes de chegar ao estádio e dar a primeira volta ao relvado [cerca de 2 horas antes da partida] estava alheado de tudo. Nem ouvia o que me diziam. Era mesmo o mais difícil. Mas a partir do momento em que entrava no relvado com as equipas tudo mudava", recorda Jorge Coroado.
Uma hora, antes do jogo, é o tempo que Lucílio Baptista reserva só para si. "Seja em casa, seja no hotel, fecho-me no quarto e durante aquele tempo preciso de ficar sozinho. Tento relaxar o máximo possível". Já nos balneários, minutos antes do apito inicial, Lucílio junta a equipa. Dão todos as mãos e lançam o grito de guerra. "É nosso!"
Para além de vestirem de preto nos jogos de futebol, Jorge Coroado, Lucílio Baptista e Howard Webb têm algo mais em comum: todos foram já ameaçados de morte. O inglês cometeu mesmo a ‘proeza’ de conseguir irritar o primeiro-ministro polaco, ao ponto de este afirmar que só lhe apetecia matar o árbitro, depois de este ter assinalado uma grande penalidade, já no período de descontos, a favor da Áustria. A frase, proferida no calor do jogo, exaltou os ânimos dos adeptos polacos. Ameaçado de morte, o inglês teve de receber protecção especial da polícia.
Lucílio Baptista nem se quer lembrar do que passou em Março deste ano, depois da polémica final da Taça da Liga, entre Sporting e Benfica, em que assinalou erradamente um penálti a favor da equipa da Luz, que acabou por levar a taça para casa. "Os momentos a seguir foram muito difíceis. Agora, apenas posso dizer que foi a situação mais complicada da minha carreira". E nem a insistência de Coroado para que revelasse mais pormenores – "Não tenhas medo, pá!" – levou o juiz setubalense a abrir o jogo.
Já longe dos relvados, Coroado não tem problemas em contar as suas aventuras, de resto já relatadas em livro. Foi ameaçado com uma faca de mato, uma pistola e durante uma semana os filhos tiveram que andar vigiados pela polícia, depois da família ter sido ameaçada de morte. "Mas a seguir a um jogo nunca me escondia e nem nunca me fechei em casa. Mas conheço quem o fazia!"
É à mesa do restaurante do hotel, pouco depois da polémica partida arbitrada por Howard Webb, que os árbitros se reúnem com o observador da UEFA. O objectivo é fazer uma primeira análise, informal. "É a reunião típica, sempre a seguir ao jogo, onde o observador apresenta o seu ponto de vista sobre a partida. Em Portugal não existe nada disto", conta Lucílio. Para o dia seguinte fica marcado o visionamento, com recurso a imagens de vídeo, das jogadas mais polémicas, "outra coisa que por cá nem ver".
Ao longo do documentário, Coroado não perde a oportunidade para lançar umas farpas. "Olha para aqueles árbitros, a olharem babados para o presidente da UEFA [Michel Platini, que dá as boas-vindas aos juízes do torneio]. Também se não o fizessem não progrediam na carreira!" Lucílio acena a cabeça em sinal de desacordo e só se ri. "O Jorge é terrível..."
"NUNCA TIVE MEDO DE ANDAR NA RUA" (Lucílio Baptista)
Em Março deste ano, Lucílio Baptista foi o centro das atenções do jogo do final da Taça da Liga, entre Sporting e Benfica. Na SIC, perante milhares de espectadores, assumiu que tinha errado ao marcar uma grande penalidade a favor do Benfica. Apesar de ameaçado, assegura que "nunca tive medo de andar na rua". Mas ainda não gosta de recordar esse momento. No primeiro jogo internacional que fez foi o 4.º árbitro de Jorge Coroado.
PERFIL
Lucílio Cardoso C. Baptista tem 44 anos e é bancário em Lisboa. É árbitro desde 1984.
"DIZEM-ME ‘LÁ VAI O HOMEM DA AZIA’" (Jorge Coroado)
"Ainda hoje me dizem ‘Olha, lá vai o homem da azia!" A expressão ficou ligada a Jorge Coroado após um polémico jogo entre o Desportivo de Chaves- Sporting. No dia seguinte, um jornalista telefonou ao árbitro e perguntou como se sentia. "Com uma terrível azia", respondeu. Na rua, algumas pessoas ainda o abordam, recordando alguns dos lances mais polémicos. "Mas hoje é mais fácil de explicar".
PERFIL
Jorge Emanuel Monteiro Coroado tem 53 anos e é bancário em Lisboa. Começou a carreira em 1975 e terminou em 2001.
NOTAS
S. JORGE
‘Kill the Referee’ estreia em Portugal a 23 de Outubro no cinema S. Jorge, em Lisboa, pelas 21h30.
PROFISSÃO
Em Portugal os árbitros devem começar a ser profissionalizados no início da próxima época.
PLATINI
A produção do documentário só foi possível porque teve o apoio do presidente da UEFA, Platini.